“Sei que aqui terei uma vida digna, pela primeira vez”,
disse, emocionado, o refugiado liberiano Joseph Morgan, ao comitê de
recepção das Nações Unidas no Canadá, em outubro de 2003. Um século e meio antes,
os ancestrais de Morgan haviam pronunciado palavras muito parecidas,
em uma situação muito diferente.
Na ocasião, eles acabavam de desembarcar na Libéria, do outro
lado Atlântico, na costa ocidental da África, um país fundado em 1824 para
servir de lar aos negros americanos. Não podiam imaginar que no século 20 a
realidade se encarregaria de destruir uma a uma suas aspirações.
Em resultado dos conflitos no país, estima-se que 238 500 mil
refugiados liberianos viviam nos países vizinhos em 2006, eles são a face mais
cruel da derrocada do sonho americano na África. Vítimas de 14
anos de guerra civil, da pobreza e da falta de perspectiva, para muitos o
caminho de volta à América – terra de onde saíram seus antepassados –
representava a promessa de uma vida melhor.
Por trás do fracasso da Libéria, há uma longa história de
guerras, conflitos étnicos e intolerância, fomentados por interesses econômicos
e imperialistas, muitas vezes inconfessáveis.
Apesar de ter sido criada oficialmente em 1830, a Libéria
começou a germinar muito antes, logo depois do fim da Guerra da Independência
(1776-1783) nos Estados Unidos.
Muitos negros americanos que lutavam contra a Inglaterra conquistaram a
'liberdade'. Pela primeira vez, esses ex-escravos circulavam livremente pelas
cidades, para espanto da comunidade racista da época.
Na Inglaterra, ocorria o mesmo. A lei antiescravagista de
1772 fez com que os poucos negros residentes no país tomassem as ruas,
desagradando a maioria da população. No fim o século, os britânicos tiveram a
ideia de mandar 411escravos libertos para Serra Leoa (país vizinho a futura
Libéria), então uma colônia britânica.
Quase todos morreram, devido às precárias condições de vida
no lugar. Mas os ingleses não desistiram e, em 1800, mandaram mais uma vez
centenas de ex-escravos para Serra Leoa. A iniciativa repetiu-se diversas
vezes, até que uma comunidade se formasse na África. O projeto britânico serviu
de inspiração aos americanos.
Tanto abolicionistas do norte como senhores de escravos do
sul queriam enviar os negros para longe. Muitos temiam revoltas. Os fazendeiros
do sul passaram
Em 1816, um ano após a proibição do tráfico de escravos nos
Estados Unidos, foi fundada a ACS (sigla para American Society for
Colonization, ou “sociedade americana para a colonização”). A entidade sem fins
lucrativos contava com o apoio de órgãos governamentais, políticos, fazendeiros
e trabalhadores e patrocinou, naquele mesmo ano, a primeira tentativa de mandar
ex-escravos americanos para o continente africano.
O local escolhido foi a Ilha Cherbro, em Serra Leoa. Os
Estados Unidos obtiveram permissão da Inglaterra para instalar os colonos na
ilha. “Os britânicos, em plena Revolução Industrial, viam na iniciativa a
possibilidade de criar um mercado consumidor abrangente que pudesse gerar
demanda para a produção de bens em larga escala”, explicou em 2003 Priscilla
Schillaro, historiadora.
“Além disso, pareceu uma boa ideia apoiar a existência de uma
colônia pró- Estados Unidos na África, como forma de inibir o tráfico negreiro
internacional, o inimigo número um dos britânicos naquele momento”, disse a
historiadora.
Mas, a primeira iniciativa de criar uma colônia americana no
continente fracassou. A maioria dos 88 passageiros do navio Elizabeth morreu de
febre amarela e malária em poucas semanas. Em 1821, a ACS enviou um
representante, o diplomata Eli Ayres, para escolher um sítio mais
apropriado para o assentamento.
Ele (acompanhado por um pequeno exército de 70 homens)
navegou cerca de 200 quilômetros pela costa da África nas proximidades de Serra
Leoa, e escolheu uma área que foi chamada de Cabo Mesurado — local da atual
capital do país. Só que a terra já tinha dono. Pertencia às tribos Dey e Bassa,
habitantes do local há séculos.
“Depois de negociações nem sempre amistosas, os chefes
tribais cederam aos americanos uma faixa litorânea de 40 quilômetros de
comprimento por 4 quilômetros de largura em troca de armas e garrafas de rum”,
contou em 2003 James Riley, historiador.
Em 1824, o governo norte-americano fundou oficialmente a
colônia da Libéria e passou a chamar sua capital de Monróvia, em homenagem ao
presidente dos Estados Unidos, James Monroe. Segundo Priscilla
Schillaro, os primeiros cidadãos liberianos foram os sobreviventes da trágica
excursão para a Ilha Cherbro. Em seguida, começaram a chegar levas de
americanos.
“No início, a administração foi entregue a representantes
escolhidos pela própria ACS. Mas, com o crescimento populacional e o
progressivo alargamento do território, começaram a surgir lideranças locais
entre os ex-escravos”, disse a especialista.
Na expectativa de aumentar as áreas cultiváveis, esses
primeiros moradores passaram a adquirir mais terras e avançar suas fazendas
além das fronteiras originais. Em menos de 40 anos, o país cresceu duas vezes
de tamanho. Não foi surpresa para ninguém quando surgiram as primeiras
desavenças locais.
Segundo Riley, as fronteiras traçadas pela ACS dividiram
etnias aliadas e reuniram no mesmo território cerca de 15 etnias, algumas delas
inimigas há séculos. “Os conflitos eram inevitáveis”, conta o professor.
Além disso, enquanto as áreas litorâneas colonizadas pelos
negros americanos prosperavam com plantações de mandioca e café e a extração de
borracha, o interior habitado pelas tribos africanas era totalmente
negligenciado.
Nesse clima de instabilidade, a Libéria proclamou sua
independência política, em 1847, mas permaneceu estreitamente atrelada à
política e à economia dos Estados Unidos, que compareciam também com armas e
navios de guerra. O que era fundamental, já que o país estava espremido entre
dois poderosos impérios: a Inglaterra, em Serra Leoa, e a França, na Costa do
Marfim.
Os interesses estrangeiros, somados ao isolamento da elite
interna, passaram a gerar conflitos cada vez mais frequentes. E cada vez mais
irreversíveis. No fim do século 19, o auxílio estadunidense começou a minguar e
os liberianos tiveram de se virar sozinhos. E se deram mal.
Em 1903, os britânicos forçaram a Libéria a entregar parte de
seu território a Serra Leoa, e os franceses avançaram sobre a fronteira com a
Costa Marfim. O país, envolvido em tantos conflitos, estava à beira da
falência, quando o presidente Theodore Roosevelt providenciou,
em 1905, uma ajuda financeira. Em 1920, conseguiu ainda mais.
Seis anos depois, a Libéria teve de começar a pagar a dívida.
O governo liberiano cedeu uma enorme área de 1 milhão de acres (ou 22 mil
estádios do Maracanã) para a indústria americana de pneus Firestone explorar
borracha.
Em 1943, ocorreu de novo: em troca da construção de um porto
em Monróvia pelos americanos, o país permitiu que a empresa Republic Steel, com
sede nos Estados Unidos, explorasse suas reservas de ferro, em uma época que a
indústria siderúrgica estava em franca expansão no mundo todo.
Apesar de tudo, os lucros obtidos com o comércio de ferro e
borracha operaram uma espécie de milagre econômico nos anos 1940, o que durante
alguns anos aumentou a renda da população, principalmente da classe média.
Os novos-ricos passaram a comprar terras em áreas antes
habitadas exclusivamente por nativos, o que colaborou para acirrar os
conflitos. “Os membros do governo invariavelmente eram membros da elite formada
pelos descendentes de americanos, enquanto 95% da população formada por etnias
locais sentia-se marginalizada”, diz Riley.
Em 1943, foi eleito presidente o descendente de
norte-americanos William Tubman. Ele mudou a Constituição para ficar no
poder por sete mandatos consecutivos. Também censurou a imprensa e passou
a perseguir os opositores de seu governo. Tubman só deixou o poder em
1971, quando morreu.
Em seu lugar, assumiu o vice-presidente William Tolbert,
que governou em constante clima de tensão. Em 1980, um grupo de jovens líderes
guerrilheiros de várias etnias se uniu para tomar o poder, liderado pelo
sargento Samuel Doe, então com 28 anos. De início, o novo governo foi
aclamado em praça pública. Mas logo as esperanças de um futuro melhor
evaporaram.
O novo presidente começou a favorecer os membros da sua
etnia, os krahns, em detrimento de todas as outras que conviviam no pequeno
país, localizado em uma área do tamanho do estado de Pernambuco.
Os habitantes do norte da Libéria passaram a ser duramente
perseguidos. Em 1985, Doe declarou-se vencedor de uma eleição que
havia perdido e instituiu uma ditadura. Um novo golpe de Estado ocorreu na
noite de Natal de 1989. As tribos que vinham sendo discriminadas por Doe ocuparam
a linha de frente da revolta.
No comando, estava Charles Taylor, que havia sido
ministro de Doe, e fora afastado por corrupção. Samuel foi
capturado e morto. Teve início uma guerra civil entre
grupos tribais que disputavam o poder, que durou sete anos. Os banhos de sangue
só terminaram com a intervenção de tropas internacionais. A paz, no entanto,
durou muito pouco.
Em 1996, dissidentes que estavam aquartelados na Guiné
invadiram o país. A outra guerra civil finalmente terminou em outubro de 2003,
com a eleição de um governo de conciliação nacional e, de novo, com a
intervenção militar dos americanos.
Em mais de uma década de lutas internas, os assassinatos
brutais, as torturas e a destruição de Monróvia enterraram de vez os pilares de
liberdade construídos pelos esperançosos ex-escravos americanos que dançaram ao
ritmo das grandes potências dos séculos 19 e 20.
Desde 1989, quando eclodiu o primeiro conflito, muitos
liberianos, como Joseph Morgan, se viram obrigados a deixar sua pátria
para salvar a pele, tornando-se refugiados políticos nos países vizinhos, na
Europa, ou de volta aos Estados Unidos.
No início dos anos 2000, com a economia em frangalhos, a
Libéria tentou refazer o sonho dos primeiros imigrantes, que tinham orgulho em
pronunciar o nome do país, uma homenagem à liberdade.
Fonte: AH