sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

O ASSASSINATO DO PAI DE JÂNIO QUADROS: BALEADO PELO MARIDO DA AMANTE

Um dos maiores embaraços que Jânio Quadros enfrentou quando estava no governo de São Paulo (1955-1959) foi o assassinato de seu pai. Médico e farmacêutico de formação, o deputado Gabriel Quadros morreu baleado pelo marido de sua amante. Em si, a situação já era delicada. Acontece que, ainda por cima, Gabriel e Jânio nunca tiveram um relacionamento tranquilo como pai e filho, e, apesar de ambos terem sido eleitos pelo Partido Trabalhista Nacional, PTN, a coisa não ia melhor na política. Militante da extrema esquerda, Jânio recebia ataques sistemáticos de Gabriel, que estava à extrema direita e chegou a usar a expressão “jâniofobia” para se referir a um “vírus” que, segundo ele, andava contaminando os parlamentares. “Já há alguns casos de contágio neste plenário”, disse o deputado, em um discurso de 1957 na Assembleia Legislativa.

A história do assassinato de Gabriel remonta à época em que o médico se elegeu vereador pelo Partido Democrata Cristão (PDC), em 1951, e tinha como cabo eleitoral o feirante José Guerreiro, dono de uma barraca de limões. Sabidamente mulherengo, o vereador traiu seu apoio iniciando um caso com a mulher dele, Francisca Flores, vulgo Nena. O triângulo ainda não havia sido desfeito quando Nena engravidou de gêmeos. Num tempo em que o exame de DNA estava longe de ser criado, as duas crianças, batizadas de Jaime e José Carlos, foram motivo de acirrada disputa entre o feirante e o ex-vereador – que agora cumpria mandato como deputa do estadual pelo PTN. De temperamento notoriamente irascível, dado a escândalos, Gabriel Quadros chegou a sair no braço com José Guerreiro em plena Praça da Sé, para decidir quem era o pai dos meninos.

A princípio, Nena afirmava que os filhos eram de Gabriel e, por conta disso, o deputado chegou a acomodá-la por alguns dias em seu gabinete na Assembleia Legislativa. Em seguida, ele a transferiu para sua própria residência, na avenida Rebouças. Ocorre que, apesar de manter com o deputado apenas um casamento de aparências, sua mulher oficial, Leonor, que agora morava com Jânio, não queria a amante do marido vivendo em uma casa que, afinal de contas, era sua também. Então, o deputado levou Nena para um sobrado que possuía na avenida Lins de Vasconcelos, na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. O irônico é que, mais tarde, quando os meninos já estavam suficientemente crescidos, ficou óbvio pelo método utilizado na época, o “olhômetro”, que eles eram filhos de Guerreiro; além de tudo, não havia caso de gêmeos na família Quadros. Mas agora que tinha começado a briga, o deputado, até por uma questão de honra, levou a defesa da paternidade até o fim.

José Guerreiro também não arredou o pé. Logo foi fazer uma visita a Nena, na Lins de Vasconcelos. Disposto a reaver os filhos, ele passou por cima da vontade da mãe deles e os levou dali para o cômodo onde morava, nos fundos de um sobrado na Mooca, zona leste de São Paulo. Ao saber do “sequestro”, Gabriel Quadros juntou cinco capangas, carregou sua arma e rumou para a Travessa Nelson Atallah, 9, onde ficava o sobrado. Foi disposto a “resgatar” Jaime e José Carlos. Era por volta de 8 horas de um sábado, dia 18 de maio de 1957, quando o deputado e três de seus homens arrombaram a porta do cômodo e avançaram na direção dos garotos. Ainda so nado, o feirante recebeu diversas pancadas, inclusive de cassetete, mas lutou contra os agressores como pode, usando um pedaço de caibro que encontrou perto da cama. Mesmo estando em minoria, conseguiu imobilizar o rechonchudo rival e arrancar dele a arma. No meio da confusão, desatinado, José Guerreiro disparou seis vezes contra Gabriel Quadros, que caiu morto. Não satisfeito, o feirante virou a arma na direção dos capangas do deputado, que, apavorados, correram em disparada. Na fuga, levaram os gêmeos. Como estava apenas de ceroulas, Guerreiro, que tinha então 30 anos, voltou para o cômodo, vestiu-se e sumiu dali.

Em pouco tempo, a pacata travessa e as ruas adjacentes foram tomadas por uma multidão de curiosos. Para se aproximar da investigação, e saber em primeira mão detalhes do que tinha ocorrido, os vizinhos se dispunham a prestar testemunhos voluntariamente. A polícia isolou a área, barrando o acesso inclusive de jornalistas, para efetuar o exame pericial. O corpo de Gabriel Quadros foi levado para o necrotério do Hospital Santa Catarina, onde o submeteram à autópsia. O laudo assinado pelos médicos legistas César Berenguer e Mattosinho França apontou como causa mortis “hemorragia interna traumática”. A Secretaria de Segurança Pública determinou que a Polícia Rodoviária vigiasse as saídas de São Paulo, a fim de impedir que o carro de placas 2-99-66, usado pelos capangas de Gabriel Quadros para fugir com as crianças, deixasse a cidade. Enquanto isso, vizinhos de Nena na avenida Lins de Vasconcelos afirmaram tê-la visto saindo às pressas de casa, por volta das 9 horas do sábado – portanto depois de o crime ter sido consumado. Ela ainda estava de penhoar quando embarcou em um carro que a aguardava. Tamanha era sua pressa que, ao entrar no veículo, deixou para trás um dos sapatos. Soube-se depois que o carro no qual embarcara era o mesmo que os homens de Gabriel Quadros utilizaram para fugir com Jaime e José Carlos.

Assim que tomou conhecimento do crime, o governador Jânio Quadros encaminhou um despacho para a Secretaria de Segurança determinando a abertura imediata de uma investigação rigorosa. “O homicídio de que foi vítima o deputado Gabriel Quadros deve ser objeto de rápido inquérito, para apuração de responsabilidades. O autor (ou autores) não sofrerá qualquer coação ou violência, assegurando vossa excelência o governador, de forma absoluta, garantias e direitos da lei.” O enterro ocorreu na tarde do próprio sábado, com a presença do governador, que, segundo seus assessores, foi ao cemitério do Araçá apesar de estar com a saúde “debilitada” (uma gripe, segundo contou a J.P uma fonte próxima a Jânio na época). O presidente Juscelino Kubitschek não compareceu. Foi representado pelo presidente da Câmara dos Deputados Ulysses Guimarães. Conhecendo o pai de sobra, Jânio declarou à imprensa durante o féretro que José Guerreiro agira em legítima defesa da honra. Embora seja comum se afirmar que foi o governador que absolveu o criminoso, Jânio apenas o perdoou – ele não tinha essa prerrogativa. O feirante foi indiciado, ficou preso preventivamente durante alguns dias, respondeu a processo e ganhou a liberdade sem ir a júri, em 1959. Para neutralizar o efeito do escândalo, o governador chegou a declarar sua carreira política encerrada – mas, ao contrário disso, em dezembro daquele mesmo ano registrou sua candidatura a deputado federal pelo PTB do Paraná, e, depois de eleito, passou a acumular os dois cargos. Os gêmeos reapareceram com a mãe, por quem foram criados. Nena se desquitou do feirante.

Por Paulo Sampaio para a Revista J.P de junho

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