Em tempos de pandemia e com a possibilidade do acesso a vacinas, a
discussão sobre a aplicação, eficácia e, até mesmo, questões que saem do âmbito
sanitário, se tornaram pautas de debates sociopolíticos acalorados no auge da
disseminação do novo Coronavírus. Porém, se engana quem acredita que tal
discussão é inédita.
No início do século 20, três graves doenças foram
capazes de acarretar epidemias que chegavam a espalhar corpos pelas ruas das
principais capitais do país.
Além de ser terrível na infecção humana, eram
proliferadas com ainda mais força graças a grande quantidade de lixo acumulando
nas ruas.
No Rio de Janeiro, especificamente, a presença de
ratos e mosquitos como transmissores acarretavam em milhares de mortes. Sem a
possibilidade de realizar uma limpeza total nas ruas, a iniciativa
governamental e mais rápida para frear o aumento de casos seria a implementação
forçada da Lei de Vacinação Obrigatória — suficiente para causar um dos maiores
distúrbios na história do país.
Estoura a Revolta
Havia alguma coisa diferente no ar naquela manhã
abafada e úmida de 13 de novembro. Nos últimos dias, boatos haviam tomado os
bares, as conversas em família depois que estudantes e operários saíram em
passeata pelo centro do Rio de Janeiro, gritando palavras de ordem e
protestando contra o governo do presidente Rodrigues
Alves.
Mas nem quem acompanhava de perto as notícias podia
prever os acontecimentos que se seguiriam. De repente, sem que parecesse haver
qualquer organização, grupos de pessoas começaram a chegar ao centro.
Tomaram as ruas do Ouvidor, da Quitanda, da Assembleia
e, quando chegaram à praça Tiradentes, já eram milhares. "Abaixo a
vacina", gritavam. O comércio baixou as portas e a polícia chegou. A
multidão respondeu em coro: "Morra a polícia", sendo correspondida
com tiros e cacetadas.
A cidade do Rio não tinha nada de maravilhosa. Entre
1872 e 1890, a população passou de 266 mil para 522 mil pessoas. Não havia
emprego para todos e a maioria se virava como podia: carregava e descarregava
navios, vendia tranqueiras, fazia pequenos serviços. É claro que ainda havia
entre eles ladrões, prostitutas e trambiqueiros.
Os pobres moravam em cortiços. O mais famoso deles, o
Cabeça de Porco, no número 154 da rua Barão de São Félix, chegou a ter 4 mil
moradores. "As autoridades consideravam os cortiços antros de doenças e de
pouca-vergonha.
Para a mentalidade da época, que aliás não mudou
muito, as moradias pobres abrigavam as classes perigosas, sujas, de onde saíam
as epidemias e toda sorte de ruindade", diz o historiador Sidney
Chalhoub, da Unicamp, autor de Cidade Febril: Cortiços e Epidemias na
Corte Imperial.
Tanta gente concentrada em condições miseráveis era um
berçário de doenças. E a situação tinha consequências drásticas que iam além da
saúde pública. Por causa da imagem de ser reduto de doenças, navios
estrangeiros se recusavam a aportar no Brasil.
E a fama não era injustificada: em 1895, o navio
italiano Lombardia, atracado no Rio, perdeu 234 de seus 340 tripulantes,
vítimas de febre amarela. Companhias europeias faziam questão de anunciar
viagens diretas à Argentina, garantindo aos interessados que seus navios
passariam ao largo da costa brasileira. Uma tragédia para um país que vivia da
exportação.
Quando Rodrigues Alves assumiu a presidência
em 1902, prometendo trazer o país para o novo século, viu naqueles cortiços um
obstáculo a ser removido. Inspirados nas recentes reformas de Paris, sob a
tutela do Barão Hausmann, os cortiços teriam que sair, as avenidas,
entrar.
Medo de injeção
Mas, para combater as doenças que abatiam os cariocas,
não bastariam as reformas urbanas no centro da cidade. Mais uma vez apoiando-se
no exemplo francês, o governo brasileiro apostou nas técnicas de saúde pública
que estavam sendo colocadas em prática por médicos como Louis Pasteur.
Para apoia-lo nessa área, Rodrigues Alves convocou
um jovem médico do interior de São Paulo que acabara de estagiar em Paris, Oswaldo Cruz.
Assim que assumiu a diretoria de Saúde Pública, em
1903, Oswaldo encarou batalhas contra a peste bubônica e formou
brigadas sanitárias que saíram pelo centro da cidade caçando ratos pelas casas
e ruas.
Chegou a adotar o método pouco ortodoxo de comprar
ratos, para estimular a população a caçar o roedor. Apesar das inevitáveis
fraudes, houve gente que foi presa por criar ratos para vender às autoridades,
a campanha contra a peste foi um sucesso.
Para enfrentar a febre amarela, no entanto, Oswaldo encontrou
oposição. Nem o combate aos mosquitos era consenso. Na época, não se sabia que
a doença era causada por um vírus nem se conhecia seu mecanismo de transmissão,
e, embora o cubano Carlos Finley já houvesse publicado sua tese de
que a doença era transmitida por um mosquito, um grande número de médicos
brasileiros acreditava que a febre amarela era causada por alimentos
contaminados.
Em 1904, seria a vez de combater a varíola. "Já
havia leis que tornavam obrigatória a vacinação desde 1884, mas essas leis não
pegaram", diz José Murilo. O governo resolveu, então, fazer uma nova
lei obrigando toda a população a se vacinar, em novembro de 1904.
O projeto, que permitia que os agentes sanitários
entrassem na casa das pessoas para vaciná-las, foi aprovado na Câmara e no
Senado, mas não sem antes quase levar aos sopapos os partidários de Rodrigues
Alves e seus opositores, que não eram poucos.
Entre eles havia os partidários do ex-presidente Floriano
Peixoto, que não se conformavam com um governo civil, como o senador (e
tenente-coronel) Lauro Sodré e, na Câmara, o major Barbosa Lima.
O senador Ruy Barbosa se manifestou, em plenário, dizendo:
"Assim como o direito veda ao poder humano invadir a consciência, assim
lhe veda transpor-nos a epiderme".
Com a querela política, o assunto chegou à imprensa.
Os jornais se dividiram: o Commercio do Brazil, do deputado florianista Alfredo
Varela, e O Correio da Manhã, de Barbosa Lima, atacavam a vacinação,
enquanto o diário governista O Paiz defendia a ideia com unhas e dentes.
Logo, não se falava em outra coisa no Rio. Os
representantes dos trabalhadores não concordavam com a nova lei, que, entre
outras coisas, exigia o atestado de vacina para conseguir emprego, e criaram a
Liga Contra a Vacina Obrigatória, que em poucos dias arregimentou mais de 2 mil
pessoas.
Pudores e violência
Pela lei, os agentes de saúde tinham o direito de
invadir as casas, levantar os braços ou pernas das pessoas, fosse homem ou
mulher, e, com uma espécie de estilete (não era uma seringa como as de hoje),
aplicar a substância. Para alguns, isso era uma invasão de privacidade e, na
sociedade de anos atrás, um atentado ao pudor.
Os homens não queriam sair de casa para trabalhar,
sabendo que suas esposas e filhas seriam visitadas por desconhecidos. E tem
mais: pouca gente acreditava que a vacina funcionava. A maioria achava, ao
contrário, que ela podia infectar quem a tomasse.
Uma população pobre, ignorante e sob o risco de perder
as casas, ofendida agora em seus mais íntimos pudores; uma imprensa ateando
fogo; políticos apoiando. Estava dada a receita e a panela de pressão já
apitava. Voltemos àquela manhã de novembro.
Quando deixamos 1904, policiais e a população trocavam
tiros e pauladas pelas ruas do centro da cidade. O corre-corre foi grande a
multidão se dispersou, deixando o centro para se reunir mais além, nos bairros
populares. Naquele 13 de novembro, houve confusão no Méier, Engenho de Dentro e
Andaraí. Vinte e duas pessoas foram presas.
Mas o pior estava por vir. No dia seguinte, logo cedo,
grupos aparentemente desarticulados vindos dos bairros rumaram para o Centro.
No caminho viraram bondes, derrubaram postes de iluminação, reuniram entulho no
meio das ruas e se prepararam para enfrentar a polícia.
No bairro da Saúde, próximo ao porto, a barricada
reuniu 2 mil pessoas, segundo relato do Jornal do Commercio, que chamou o lugar
de Porto Arthur, em alusão a um forte na Manchúria, onde japoneses e russos
travavam uma sangrenta batalha.
Liderados entre outros por Horácio José da Silva,
o Prata Preta, os defensores de Porto Arthur estavam armados com revólveres e
navalhas. Alguns marcharam com armas nos ombros e se espalhou que tinham até um
canhão.
Por três dias conseguiram repelir a polícia, mas no
dia 16 o Exército, apoiado por tropas de São Paulo e Minas Gerais, invadiu o
local, numa ação que contou ainda com bombardeios da Marinha. O suposto canhão
era um poste deitado sobre uma carroça.
No dia 14, enquanto o pau ainda comia nas ruas, a
confusão chegou aos quartéis. O esforço conspiratório que duraria o dia todo
começou logo cedo. O senador Lauro Sodré e o deputado Alfredo
Varela reuniram-se no Clube Militar com a cúpula dos militares. No
entanto, o ministro da Guerra, marechal Argollo, conseguiu melar o encontro e
mandou todo mundo para casa.
À noite, uma parte dos conspiradores tentou tomar a
Escola Preparatória do Realengo, mas não conseguiu. Outro grupo, liderado pelo
próprio Sodré, invadiu a Escola Militar da Praia Vermelha e convenceu
cerca de 300 cadetes comandados pelos generais Silva Travassos e Olímpio
Silveira a marcharem rumo ao Palácio do Catete.
Lá, deram de cara com cerca de 2 mil homens leais ao
governo. Houve tiroteio, Lauro Sodré desapareceu, mas o general Travassos foi
ferido e preso. Saldo da quartelada: três golpistas mortos e 32 soldados
feridos.
Nas ruas, a batalha só terminou no dia 23, quando o
Exército tomou um dos últimos núcleos da revolta, o morro da Favela. Pelos
cálculos do historiador José Murilo de Carvalho, durante toda a revolta
foram detidas 945 pessoas, sendo que 461, todas com antecedentes criminais,
foram deportadas para locais distantes como o Acre e Fernando de Noronha. Não
há estatísticas oficiais, mas acredita-se que 23 pessoas tenham morrido,
segundo as estimativas dos jornais da época, e pelo menos 67 ficaram feridas.
A vacinação obrigatória foi suspensa. Mas o governo
manteve a exigência de atestado para casamentos, certidões, contratos de
trabalho, matrículas em escolas públicas, viagens interestaduais e hospedagem
em hotéis. Nem todos esses cuidados, no entanto, impediram um novo surto de
varíola. Em 1908, quando a cidade do Rio de Janeiro registrou quase 10 mil
casos, o povo fez fila, voluntariamente, para se vacinar.
Fonte: AH
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