O Reino de Axum surgiu no primeiro século da nossa era
no território que corresponde hoje ao norte da Etiópia e à Eritreia, beijando o
Mar Vermelho. Cerca de 400 anos mais tarde, um grupo de missionários, vindos da
Síria, Constantinopla, Anatólia e até de Roma, foi fundamental para que o
cristianismo fincasse os pés naquela região.
Um desses missionários, que passaram à eternidade como
os Nove Santos, era Abuna Yemata (ou Abba Yem'ata). A igrejinha dedicada a ele
em Tigré, berço da civilização etíope, não é uma igreja comum. Ela consegue a
proeza de ter seus mil quatrocentos e tantos anos de existência e isso não ser
sua característica mais marcante. Abuna Yemata Guh é, possivelmente, a igreja
mais inacessível do planeta.
A Etiópia tem diversas igrejas escavadas em rocha.
As 11 de Lalibela, patrimônio da humanidade,
foram esculpidas há mais de 700 anos e atraem peregrinos até hoje. São as mais
famosas do país.
Já Abuna Yemata Guh não é tão impressionante em termos
arquitetônicos. O que a torna tão especial é justamente a dificuldade de se
chegar lá.
Fiéis, aventureiros e fiéis/aventureiros devem cruzar uma ponte de pedra a 250 m de altura, depois uma ponte de madeira estreita, seguida de uma caminhada extenuante até chegar a uma rocha vertical. Após escalar a pedra, é preciso atravessar uma saliência de 50 cm de largura sobre um precipício de 300 m. Tudo isso a uma altitude de 2.580 m, sem uso de equipamento. E descalço, como a tradição local cristã manda.
A vista compensa, mas não é só ela. A baixa umidade do
ar preservou os afrescos do interior do templo. Representando os Nove Santos,
além dos apóstolos, as pinturas são um exemplo de arte cristã primitiva.
A igreja se sustenta em pilares de arenito resultantes
do processo de erosão que aconteceu nos tempos de Gondwana, explica Frances M.
Williams no livro Understanding Ethiopia: Geology and Scenery.
Esse megacontinente surgiu há uns 540 milhões de anos,
juntando América do Sul, África e grande elenco. Depois, há 420 milhões de
anos, com os movimentos do megazord continental, uma grande cadeia de montanhas
começou a se esfarelar com a ação do vento, da água e do gelo. Rios daquilo que
hoje chamamos de Etiópia, que ficava bem no meio dessa antiga cordilheira, levaram
os sedimentos para o futuro Sudão e também para a Arábia e a Índia, que depois
se separariam de Gondwana, formando o mapa que conhecemos hoje.
CRISTIANISMO NAS ALTURAS
As montanhas etíopes mostraram-se ideais para
divulgadores e praticantes dessa nova religião poderem se proteger de inimigos
e perseguidores. Deu certo, e o cristianismo vingou na Etiópia.
Enquanto muitos vizinhos se convertiam ao islamismo, o
país desenvolveu seu próprio ramo cristão, a Igreja Ortodoxa Etíope. Com cerca
de 50 milhões de fiéis, ela faz parte do grupo das igrejas ortodoxas orientais,
assim como os coptas e os armênios, entre outros. Ainda no século 5, por terem
visões distintas sobre a natureza de Cristo, essas igrejas se separaram dos
católicos e ortodoxos europeus.
Nos últimos anos, ONGs vêm denunciando a perseguição a
cristãos em algumas áreas do país. No entanto, hoje, o grande foco de tensão da
Etiópia é entre os seus dois maiores grupos étnicos, os oromos e os amarás.
Desde que o músico e ativista Haacaaluu Hundeessaa, jovem e proeminente ídolo
oromo, foi assassinado, no fim de junho, a Etiópia tem vivido ondas de
violência brutais.
A origem da rixa não está na religião, mas nas visões
conflitantes de país: de um lado os pan-etíopes, de outro os nacionalistas
étnicos. Porém, como muitas vezes em contextos do tipo, qualquer diferença é
desculpa para treta. Houve casos de ataques entre cristãos e muçulmanos até mesmo
dentro da comunidade oromo, segundo a revista etíope Addis Standard.
Diferentemente dos amarás, que em sua maioria são
cristãos ortodoxos etíopes, os oromos são um caldeirão de sunitas, ortodoxos e
seguidores de religiões tradicionais africanas. O próprio primeiro-ministro
etíope, o oromo Abiy Ahmed, é protestante, filho de pai muçulmano e mãe
ortodoxa.
O carismático Ahmed chamou a atenção do mundo ao
soltar presos políticos e montar um gabinete dividido meio a meio entre homens
e mulheres. No ano passado, ganhou o Nobel
da Paz ao assinar um acordo com a Eritreia, país que conquistou a
independência da Etiópia em 1993, gerando uma nova e conflituosa fronteira no
Chifre da África.
Mesquitas e igrejas têm servido de abrigo para as
vítimas da onda de violência atual. Uma realidade bem distante da vivida em
Abuna Yemata. Em 2018, a BBC exibiu a história do padre
Haylesilassie Kahsay. Sua rotina era a seguinte: acordar de
madrugada, trabalhar até as 6h, comer, caminhar por duas horas e, aí então,
iniciar o processo de subida para a igreja, daquele mesmo jeito que descrevi há
alguns parágrafos.
Talvez a fé não mova montanhas, só as placas
tectônicas, as mesmas que fizeram e desfizeram Gondwana. Mas que montanhas
inspiram a fé, isso 15 séculos de história etíope estão aí para mostrar.
Fonte:
UOL
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