As invenções que mudam o curso da
história não costumam surgir da noite para o dia. São resultado do trabalho
árduo de diversos inventores e cientistas, que
preparam o terreno para uma descoberta revolucionária. Entretanto, o crédito
costuma ir para apenas uma pessoa, que, por inventividade, gênio ou até por
sorte, acaba dando o passo decisivo.
A ele ou ela está garantida todas as glórias. Às
vezes, porém, é difícil determinar quem merece ter seu nome imortalizado. É o
caso da disputa entre Alberto Santos Dumont e os irmãos Wilbur e Orville
Wright. Santos Dumont é louvado como Pai da Aviação no Brasil.
No resto do planeta, ele é um ilustre desconhecido: o
título de desbravadores dos céus cabe aos Wright. Nos Estados Unidos, terra
natal dos dois irmãos, houve a maior festança no centenário do primeiro voo da
dupla, ocorrido em 1903 – três anos antes de Santos Dumont voar com seu 14 Bis.
Mas, afinal, qual das datas está correta? Quem foi o
inventor do avião?
Para tentar responder a essas perguntas, é preciso
voltar à virada do século 19 para o 20. “Dois grandes desafios se apresentavam
com relação à conquista do ar: a dirigibilidade dos balões (ou seja, a
capacidade de controlá-los) e o voo com aparelhos mais pesados do que o ar”,
descreveu o físico Henrique Lins de Barros, autor do livro Santos Dumont e a
Invenção do Voo.
A partir de 1890, as experiências se multiplicaram em
ambas as frentes. Havia muita expectativa, o problema é que não existia uma
definição para o voo controlado, nem do balão nem do “aparelho mais pesado do
que o ar”.
Em 1898, foi criado o Aeroclube da França. Com o
intuito de estimular a competição e ao mesmo tempo estabelecer marcos
históricos definitivos, o Aeroclube criou prêmios que seguiam critérios
básicos.
Para a dirigibilidade dos balões, foi definido que a
experiência seria pública, realizada diante de uma comissão oficial e com data
marcada, para evitar que fatores como condições climáticas favorecessem algum
concorrente.
Até então, a prática comum era levar um cientista de
renome para observar a demonstração e escrever um parecer, mas os relatos eram
subjetivos e carregados de emoção.
Em outubro de 1901, o Prêmio Deutsch – oferecido pelo
magnata do petróleo Henri Deutsch de la Meurthe, no valor de 50 mil francos –
foi arrematado por Santos Dumont, após contornar a Torre Eiffel a bordo de um
dirigível.
Sua principal inovação foi acoplar um motor de
combustão interna movido a gasolina (que depois ele usaria nos aviões) a um
balão de hidrogênio. Um a zero. No entanto, definir o que seria um voo de avião
era um desafio bem maior.
O assunto era polêmico, e muitas pessoas nem sequer
acreditavam na possibilidade de algo mais pesado do que o ar levantar voo. A
descrença era comum até entre célebres cientistas. Em 1895, o físico e
matemático britânico Lord Kelvin declarara que “máquinas voadoras mais pesadas
que o ar são impossíveis”.
A ciência, porém, avança contrariando o impossível, e
homens cheios de imaginação se lançaram ao sonho de voar. O francês Clément
Ader montou um aeroplano em forma de morcego, que chegou a perder contato com o
chão, sem ganhar, no entanto, altitude.
Samuel Langley, dos EUA, conseguiu fazer um pequeno
modelo não tripulado voar. Entretanto, era Otto Lilienthal quem causava
sensação na crítica especializada e, de longe, se tornara o preferido do
público.
Voando em planadores inspirados nos pássaros, o alemão
mostrou que um voo eficiente era possível. Para o Aeroclube francês, no
entanto, planar não era o mesmo que voar. Ainda se discutiam os critérios para
determinar o prêmio do primeiro voo de aparelho mais pesado do que o ar,
quando, em 1903, chegou à Europa a notícia de que os Wright haviam realizado os
primeiros voos controlados em um avião.
Porém, a única evidência era um telegrama escrito
pelos próprios irmãos, contando terem voado contra ventos de cerca de 40 km por
hora. Nos dois anos seguintes, os rumores eram de que eles haviam percorrido
distâncias cada vez maiores, chegando a impressionantes 39 km. “Mas os irmãos
não divulgavam uma foto sequer, e não permitiam que testemunhas neutras
acompanhassem o experimento”, conta o físico Marcos Danhoni Neves.
Os franceses ignoraram o feito, por falta de provas
concretas e também devido ao vento forte, que ajuda o avião a decolar.
Estabeleceu-se que o voo deveria ser feito com tempo calmo, e que o aparelho
fosse capaz de alçar voo sem ajuda de elementos externos (o vento ou uma
catapulta, por exemplo).
Como no caso dos balões, a façanha deveria ser
acompanhada por uma comissão oficial. E foi assim que, no dia 23 de outubro de
1906, foi realizado o primeiro voo homologado da História.
Nos campos de Bagatelle, em Paris, na presença de
juízes e de uma multidão de curiosos, Santos Dumont pilotou seu 14 Bis por exatos
60 metros, a uma altura entre 2 e 3 metros. “O homem conquistou o ar!”,
gritavam as pessoas em terra firme.
Pelo feito, o brasileiro recebeu prêmio de 3 mil
francos oferecido por Ernest Archdeacon, um dos fundadores do Aeroclube. Menos
de um mês depois, em 12 de novembro, ele voou ainda mais longe, 220 metros (a 6
metros de altura), batendo o próprio recorde.
Conduta diferente
Enquanto isso, os irmãos Wright mantinham segredo
sobre sua invenção, apesar dos convites para que fossem demonstrá-la na Europa.
“Um dos motivos pelos quais os americanos se
recusavam a participar dos eventos franceses era que seu avião, para decolar,
usava uma catapulta, com um peso de 700 kg que descia de uma torre e
impulsionava o aparelho para o voo, algo totalmente fora do parâmetro dos
europeus”, diz.
Outra razão para mistério era o medo de que sua ideia
fosse roubada. Em 1904, a Feira Mundial de Saint Louis ofereceu um prêmio para
quem conseguisse voar, mas eles não compareceram.
Em 1905 e 1906, tentaram vender o projeto da máquina
voadora para o Ministério da Guerra dos EUA e depois para o governo francês,
mas recusaram-se a fazer demonstrações e, por isso, o negócio não foi para
frente.
A conduta dos Wright era bem diferente da de Santos
Dumont, que publicava seus projetos. E, ao contrário dos americanos, que
consideravam sua invenção relativamente acabada, o brasileiro estava sempre
testando novas engenhocas.
Antes do 14 Bis, ele se esforçara para aperfeiçoar o
dirigível. Até 1905, construiu mais oito aparelhos do tipo, sem contar um
helicóptero que não decolou e um aeroplano que foi abandonado no meio.
Só então voltou-se para o desenvolvimento de uma
máquina “mais pesada do que o ar”. O próprio Santos Dumont explicou mais tarde
a razão da demora: “É que o inventor, como a natureza de Lineu, não faz saltos:
progride de manso, evolui”.
Ele sabia que a decolagem dependia de um motor potente
e, enquanto não havia um, seguia explorando os balões. Curiosamente, o primeiro
projeto de Santos Dumont era parecido com um avião moderno, mas diferente dos
aviões da época. Porém, devido às críticas, ele abandonou a ideia.
A cautela estava ligada também a um evento que abalou
os pioneiros da aviação: a morte de Otto Lilienthal, cujo avião se espatifou em
1896. “O episódio lançou uma onda de medo entre os inventores, que resolveram
adotar a configuração chamada canard”, conta Henrique.
Canard quer dizer “pato” em francês e refere-se à
posição das asas na parte de trás e o bico na frente. Nessa configuração, o
profundor – leme horizontal que ajuda a erguer o nariz da aeronave para que ela
possa levantar voo – fica na frente, enquanto nos aviões atuais é localizado na
traseira.
Os Wright foram os principais divulgadores do canard e
influenciaram o próprio Santos Dumont, que adotou a configuração no 14 Bis.
Em 1908, os Wright finalmente levaram o Flyer para a
Europa e apresentaram pela primeira vez as fotos do voo de 1903. “A essa
altura, todos estavam interessados nos recordes de distância, e os Wright, que
de fato tinham desenvolvido melhor a parte de aerodinâmica e controle no ar,
sabiam que, nesse ponto, poderiam se sair bem”, diz.
Os americanos causaram sensação no Velho Mundo com
voos de mais de 100 km. Tornada pública, sua invenção ajudou a impulsionar o
desenvolvimento da aviação, que atingiria um marco com a travessia do Canal da
Mancha (entre França e Inglaterra) pelo francês Louis Blériot, em 1909.
Inovações importantes
Na comparação, do ponto de vista aerodinâmico, o avião
brasileiro sai perdendo. Baseado no conceito das células de Hargrave (caixotes
vazados como em pipas japonesas), o 14 Bis acabou ultrapassado.
Porém, trouxe inovações importantes: o trem de pouso e
os ailerons, que permitem a inclinação para os lados, conferindo maior
estabilidade. E há quem defenda que a aeronave dos Wright nem sequer possa ser
considerada um avião.
“O que eles inventaram não passa de um planador
motorizado. Muita gente se surpreende ao saber sobre a catapulta”, diz Marcos.
A polêmica está cercada de ufanismo, e é provável que
jamais possamos dizer com certeza quem foi o primeiro homem a voar. Porém, há
um fato curioso. Uns 100 anos depois do feito de Santos Dumont, o 14 Bis voltou
a ganhar os céus.
Ou quase: trata-se de uma réplica, construída pelo
coronel paulista Danilo Flôres Fuchs, que pilotou seu avião diversas vezes, no
Brasil e na França. “Ele é bastante estável e é possível atingir distâncias
maiores de 1 km”, afirmou o aventureiro na época.
Nos EUA, sonha-se fazer o mesmo com o Flyer. Existe
até uma fundação, a Discovery of Flight Foundation, que se dedica a estudar a
façanha dos Wright, construindo réplicas e tentando fazê-las voar. Ainda não
conseguiram.
Fonte: AH
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