O retrato de uma
sociedade é o resultado da análise de tudo o que sobra para ser desenterrado
muitos anos depois. No futuro, quando a arqueologia fizer suas escavações à
procura de sinais que ajudem a entender a decadência do Brasil, encontrará em
meio aos escombros deste domingo, dia 2 de setembro de 2018, evidências de que
o cinismo é o máximo de sofisticação filosófica que a civilização foi capaz de
alcançar nesta terra de palmeiras. Só o cinismo aproximará o Brasil da verdade.
Numa velocidade de truque cinematográfico, as chamas consumiram a
história armazenada durante 200 anos no Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista,
no Rio. Os arqueólogos encontrarão uma camada de oportunismo político sobre as
cinzas. Eles se espantarão com os resíduos de uma nota oficial de Michel Temer.
Lerão no documento: ''Incalculável para o Brasil a perda do acervo do Museu
Nacional. Hoje é um dia trágico para a museologia de nosso país. Foram perdidos
duzentos anos de trabalho, pesquisa e conhecimento. O valor para nossa história
não se pode mensurar, pelos danos ao prédio que abrigou a família real durante
o Império. É um dia triste para todos brasileiros''.
Os pesquisadores descobrirão que o mesmo Temer dera de ombros para a
tentativa do diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner, de ser recebido no
Planalto. Queria conversar sobre as ruínas da instituição e a necessidade de
reformas. Pleiteava a ocupação de um terreno da União. Nele, instalaria a
administração do museu, para que o prédio histórico pudesse ser restaurado. Mas
Alexander não conseguiu passar “do cara do cafezinho”.
Os arqueólogos gargalharão
quando derem de cara com uma manifestação da senadora Gleisi Hoffmann,
presidente do PT: “O museu é mais uma vítima do golpe, da turma do
austericídio.” Constatarão que o torniquete financeiro que asfixiou o museu foi
agravado sob Dilma Rousseff, a quem Gleisi servira como ministra-chefe da
poderosa Casa Civil da Presidência.
Desde o ocaso do
primeiro mandato de Dilma que o Museu Nacional, subordinado à Universidade
Federal dio Rio, não recebia nem mesmo a totalidade dos R$ 520 mil anuais que
deveriam custear sua manutenção. A rubrica murchou para R$ 427 mil em 2014.
Gleisi não chiou.
A cifra caiu para R$ 257
mil em 2015. Nem um pio de Gleisi. Em 2016, ano do impeachment, liberaram-se R$
415 mil. Nada de Gleisi. No ano passado, R$ 346 mil. E Gleisi: “zzzzzzzzzzzz”.
Até abril de 2018, foram repassados irrisórios R$ 54 mil. Súbito, o incêndio
ateou em Gleisi uma indignação cenográfica.
A arqueologia concluirá
que a decadência transformou o Brasil numa cleptocracia pós-ideológica. O
problema não era de esquerda nem de direita. O problema era a meia dúzia que se
revezava por cima, zelando para que as verbas do Tesouro Nacional, extraídas do
bolso dos que estavam por baixo, continuassem saindo pelo ladrão.
Quando for estudada no futuro, a realidade brasileira parecerá ainda
mais inacreditável. Além do cinismo, os estudiosos ficarão intrigados com o
excesso de ironia. Descobrirão que, por uma trapaça do destino, a história
guardada no Museu Nacional virou cinzas num instante em que o BNDES liberava R$
21,7 milhões para
reformar o prédio. O fogo chegou antes.
Coube aos bombeiros realizar a descoberta mais constrangedora: a inépcia
e a corrupção cresceram tanto que fizeram desaparecer no Brasil até a água
dos hidrantes. Uma
declaração do ministro da Cultura de Temer revelará que, no dia 2 de setembro
de 2018, desapareceu também o senso de ridículo das autoridades: ''Já falei com
o presidente Michel Temer e com o ministro da Educação. Vamos começar a fazer o
projeto de reconstrução do Museu Nacional, para ver quanto é e como
viabilizar.'' Os arqueólogos atestarão que, do ponto de vista político, o homem
público brasileiro era apenas um cadáver mal informado. Não sabia que havia
morrido.
Fonte: Blog
do Josias de Souza
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