"O Vlado não tinha ideia do que poderia
acontecer com ele, porque tinha uma militância amena, era de um grupo de
jornalistas que jamais imaginava que poderia ser preso", conta Fernando
Pacheco Jordão, melhor amigo do jornalista Vladimir Herzog e
seu colega na redação de O Estado de S. Paulo e na BBC de Londres.
"Não que nós achássemos que isso justificasse,
mas as pessoas presas eram de militância pesada, gente ligada à luta
armada", diz Jordão. "Quem só militava intelectualmente jamais
poderia imaginar que seria submetido a tortura e até morreria por causa
disso."
Aconteceu. E justamente em 1975, ano que começa
sepultando a censura prévia dos jornais e termina com a tortura e morte de um
jornalista sem nenhuma conexão com movimentos armados.
Na manhã do sábado, 25 de outubro, há 45 anos, a
ditadura militar fazia mais um prisioneiro. Procurado na noite anterior, Herzog,
diretor de jornalismo da TV Cultura, conseguira adiar para o dia seguinte sua
apresentação o DOI-Codi de São Paulo.
Ele compareceu às 8 da manhã.
No meio da tarde já estava morto, vítima de tortura
que os agentes do DOI tentaram acobertar com a usual farsa do suicídio —
era o 38º suicida produzido pelos porões da ditadura. Fotos mostrando o cadáver
de Herzog enforcado
com um cinto preso a uma grade a 1,63 metro do chão mostradas aos demais
presos.
De acordo com o Laudo de Encontro de Cadáver expedido
pela Polícia Técnica de São Paulo, Vlado havia se enforcado com a
cinta que era usada em seu macacão. Entretanto, o que contraria essa afirmação
é o simples fato de que os prisioneiros do DOI-Codi não dispunham de cintos
e, tampouco, sapatos com cordões, o que faria ser impossível ele ter se
suicidado. Além do mais, no laudo foi anexado fotos que mostram os joelhos de
Herzog dobrados com seus pés tocando o chão, o que torna o
enforcamento impossível nessas condições.
Outro ponto fundamental revelado anos depois, foi que
seu pescoço tinha a existência de duas marcas, que são típicas em casos de
estrangulamento. Mais uma vez derrubando a falácia dos militares.
Com todas essas evidências, a família de Herzog
recebeu, em 2013, um novo atestado de óbito, no qual o motivo de óbito foi
trocado “asfixia mecânica por
Além das pretensas provas de suicídio, a tese da
infiltração comunista nas instituições era alardeada até no cárcere.
"Os agentes nos diziam que no comando do Partido
Comunista, acima dos tais dirigentes que já estavam presos, viriam pessoas
insuspeitas, como um cardeal, um governador e um general", afirma o
jornalista Paulo Markun, colega de Herzog na TV Cultura e também
detido naquela época. "Era uma referência clara a dom Paulo Evaristo
Arns, ao governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, e ao general Golbery."
Clarice, mulher de Herzog, conta que ele passara
a frequentar as reuniões de discussão do PCB havia dois anos, por não ver outra
forma de contestar a ditadura. “Ele identificava duas forças organizadas: a
Igreja Católica e o Partido
Na sexta-feira, 31 de outubro de 1975, barreiras
bloqueavam os acessos à praça central de São Paulo. Estava marcado para a
Catedral da Sé um culto ecumênico em memória de Vladimir Herzog. A força
policial era ostensiva e o clima tenso.
"Antes de começar, chegaram três homens para
dizer que eu deveria desistir e que havia 500 agentes na praça para atirar em
que quer que dissesse abaixo a ditadura", relata dom Paulo Evaristo
Arns que iria realizar o culto ao lado do rabino Henri Sobel.
"Eu disse: Vocês usam a arma, nós usamos o coração."
Dias antes, no enterro de Herzog, o rabino Sobel contestara
a versão oficial para a morte, negando-se a enterrar Herzog na área
do Cemitério Israelita destinada aos suicidas. O Sindicato dos Jornalistas
havia redigido uma nota à imprensa tão diplomática quanto desafiadora.
"O Sindicato dos Jornalistas deseja notar que,
perante a lei, a autoridade é sempre responsável pela integridade física das
pessoas que coloca sob sua guarda e reclama um fim a essa situação, em que
jornalistas profissionais, cidadãos com trabalho regular e residência
conhecida, permanecem sujeitos ao arbítrio de órgãos de segurança."
"Todos os cuidados eram necessários para que a
gente denunciasse o crime, sem dar pretexto para fecharem o sindicato",
diz Audálio Dantas, presidente da entidade à época. O sindicato já
denunciara as prisões que se sucederam ao Discurso de Pá de Cal. A imprensa
noticiou a morte de Herzog com destaque, indo muito além das notas
oficiais secas que costumavam registrar suicídios e mortes em confronto de
vítimas da repressão.
Era a primeira vez que isso acontecia desde que foi
instalada a censura prévia nos jornais. Apesar das barreiras policiais, 8 mil
pessoas comparecem à Catedral da Sé. "Foi uma cerimônia comovente, todo
mundo que estava na catedral chorou", relembra dom Paulo, que já
atuava ostensivamente na defesa de presos políticos desde novembro de 1970.
No final, o que poderia ter se transformado em um
tumulto sangrento entrou para a História como a primeira grande manifestação
popular desde AI-5 e uma peça importante no quebra-cabeças da abertura
brasileira.
Fonte: AH
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