Numa terra agreste do sertão de Pernambuco, no século
19, dois rochedos de mais de 30 metros escondiam um rei encantado, Dom
Sebastião, que estava prestes a ressurgir para trazer paz e prosperidade ao
povo.
Para que ele desencantasse, porém, as pedras teriam de
ser banhadas com sangue de sacrifício humano. Só então o rei ressuscitaria e,
como um Deus, operaria milagres na terra e nas vidas secas do Sertão.
Parece filme, mas essa história é real e aconteceu em
Pedra Bonita, região que atualmente pertence ao município de São José de
Belmonte, a quase 500 quilômetros de Recife. O ano era 1835 e o movimento, que
durou três anos, foi inspirado em uma crença lusitana surgida no século 16, o
sebastianismo.
Em 4 de agosto de 1578, Dom Sebastião, rei de
Portugal, foi morto na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, enquanto lutava
contra os mouros. Solteiro e sem filhos, foi sucedido pelo tio-avô, o cardeal
Dom Henrique, que morreu dois anos depois.
Dom Sebastião era filho de Joana da Áustria e de João
Manuel, príncipe herdeiro de Portugal, que morreu dias antes do nascimento do
filho. O professor de história da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Severino
Vicente da Silva conta que o nascimento de Dom Sebastião provocou grande
expectativa à época, porque havia o temor de Portugal ficar sem herdeiro.
"Nascido em 1554, Sebastião foi feito rei aos 14
anos, em 1568. Educado em meio extremamente religioso (catolicismo) na corte de
seu avô, Dom João 3º, e educado por seu tio cardeal, Dom Henrique, o menino
Sebastião talvez tenha sido o mais amado dos reis portugueses, pois foi
desejado antes de nascer e, talvez, mais ainda após a sua morte."
O falecimento de Dom Sebastião representou uma perda
substancial para Portugal, pois rompeu o fio hereditário que determinava a
independência do país. Também frustrou o desejo lusitano de criar um império
português no norte da África e combater os mouros em nome de Cristo, projeto
que terminou tragicamente, na batalha de Alcácer-Quibir.
A ausência de um rei expôs Portugal ao domínio
espanhol. "Portugal ficou sem rei, o que permitiu que o rei de Espanha,
Filipe 2º, reivindicasse o trono para si, o que conseguiu pela força das tropas
do Duque de Albae pelo Tratado de Tomar, em 1580. Portugal passava aí a ser um
Reino Unido com a Espanha", afirma o professor da UFPE.
De acordo com Silva, muitos portugueses rechaçaram, à
época, a notícia da morte de dom Sebastião. "Afirmavam que ninguém vira o
rei ser morto", diz.
Surgiu, então, a crença de que o rei não havia morrido
na batalha de Marrocos, mas regressaria como um redentor do povo lusitano,
restaurando a autonomia da coroa portuguesa. Assim, o falecido rei de Portugal
ganhou auras messiânicas.
"Durante algum tempo apareceram vários
'Sebastiãos', em Portugal, na Espanha e na Itália havia o Encoberto (o
Sebastião italiano não falava português, e dizia que não o fazia para não ser
assassinado). Todos esses foram presos e perderam-se nas galés e na
história", conta o professor.
Sebastianismo no Sertão.
A crença portuguesa, porém, não se limitou ao
continente europeu. O misticismo cruzou o Oceano Atlântico nas caravelas e
chegou ao Brasil — que, como colônia portuguesa, também esteve sob o domínio
espanhol até o fim da União Ibérica, em 1640.
No século 19, o movimento messiânico teve forte
influência no país, especialmente no Nordeste, onde uniu fanatismo religioso
com demandas por justiça social.
A primeira manifestação de que se tem notícia ocorreu
na Serra do Rodeador, em Bonito, interior de Pernambuco, em 1819. Menos de duas
décadas depois o movimento eclodiu em Pedra Bonita, também em Pernambuco, e, no
final do século 19, inspirou Antônio Conselheiro na Guerra de Canudos, na Bahia.
Todos os conflitos tiveram desfechos trágicos.
Em Pedra Bonita, Serra do Catolé, sertão de
Pernambuco, o sebastianismo veio à tona em 1835, no conturbado período
Regencial no Brasil (quando o país foi governado por regentes, que exerciam o
poder no lugar do monarca).
"Entre 1831 e 1840 foi grande a movimentação
entre os donos do poder no Brasil", diz Silva. Neste período, compreendido
entre a abdicação de Dom Pedro 1º e a declaração de maioridade de seu herdeiro,
Dom Pedro 2º, o país passou por quatro diferentes regências.
Nessa época, grupos sociais que viviam no isolamento
das lavouras e sentiam-se esquecidos pelos governantes, passaram a alimentar
sonhos de justiça, paz e fartura.
Segundo Severino Vicente da Silva, as informações
reunidas na memória, transmitidas pela tradição oral ao longo dos anos e também
pela literatura de cordel foram readaptadas à situação desse período e
alimentaram sentimentos de insatisfação social.
"Afinal, houve um rei — dizia um avô ou uma avó
que ouvira de seus avós — que morrera querendo salvar uma nação. Ou melhor:
houve um rei que, indo para uma batalha salvar a sua nação, em nome de Deus,
contra os infiéis, não voltara, mas ainda voltará", diz.
Nesse contexto, João Antônio dos Santos, um sertanejo
morador de Villa Bella, em Pernambuco, propagou que Dom Sebastião havia
aparecido para ele e prometido regressar para libertar o povo da pobreza
extrema.
João Antônio se intitulou rei e fundou uma espécie de
reino no povoado de Pedra Bonita. O líder sebastianista criou acampamento em
torno de duas pedras e batizou o local de Reino Encantado de Pedra Bonita.
Com discursos alimentando a esperança na vinda de Dom
Sebastião, João Antônio começou a incomodar as autoridades locais e líderes
religiosos, que agiram para afastá-lo dali, conta o professor da UFPE.
Deu certo, mas não foi o suficiente para extinguir o
Reino de Pedra Bonita. Com o afastamento de João Antônio, quem assumiu a
liderança da comunidade foi seu cunhado João Ferreira, que retomou o discurso
do seu antecessor com ainda mais força.
O "Reino Encantado" chegou a ter cerca de
300 seguidores. Segundo Silva, não há muitos documentos dessa época, o que
dificulta o acesso a detalhes de como essa comunidade vivia. O certo é que,
para além do fanatismo religioso, havia um significado político de
reivindicação social.
"Essas pessoas desejavam um outro rei, uma outra
sociedade. O isolamento social, contudo, cobra seu preço. A ausência de
melhorias e as práticas sociais comuns, como conversar e beber, podem ser
estopim para ações que normalmente não aconteceriam."
Em 14 de maio de 1838, João Ferreira decidiu que
chegara o momento de Dom Sebastião desencantar, e que isso só ocorreria após o
sacrifício de fiéis.
"De 14 a 18 de maio de 1838, morreram 87 pessoas,
entre sebastianistas e homens da força policial. As principais figuras do
movimento foram sacrificadas antes ou morreram nos combates com as forças do
major Manoel Pereira da Silva", conta Valdir Nogueira, historiador e
diretor municipal de Cultura de São José do Belmonte. Era o fim do Arraial da
Pedra Bonita.
Fonte: BBC News